quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

30 ANOS DE VIGIAR E PUNIR (FOUCAULT)* Juarez Cirino dos Santos

I. Introdução

O objetivo de FOUCAULT, em Vigiar e Punir, é descrever a história do poder de punir como história da prisão, cuja instituição muda o estilo penal, do suplício do corpo da época medieval para a utilização do tempo no arquipélago carcerário do capitalismo moderno.Assim, demonstrando a natureza política do poder de punir, o suplício do corpo do estilo medieval (roda, fogueira etc.) é um ritual público de dominação pelo terror: o objeto da pena criminal é o corpo do condenado, mas o objetivo da pena criminal é a massa do povo, convocado para testemunhar a vitória do soberano sobre o 
criminoso, o rebelde que ousou desafiar o poder. O processo medieval é inquisitorial e secreto: uma sucessão de interrogatórios dirigidos para a confissão, sob juramento ou sob tortura, em completa ignorância da acusação e das provas; mas a execução penal é pública, porque o sofrimento do condenado, mensurado para reproduzir a atrocidade do crime, é um ritual político de controle social pelo medo.No estudo da prisão, a originalidade de FOUCAULT consiste em abandonar o critério tradicional dos efeitos negativos de repressão da criminalidade, definido pelas formas jurídicas e delimitado pelas conseqüências da aplicação da lei penal, para pesquisar os efeitos positivos da prisão, como tática política de dominação orientada pelo saber científico, que define a moderna tecnologia do poder de punir, caracterizada pelo investimento do corpo por relações de poder, a matriz comum das ciências sociais contemporâneas.
Desse ponto de vista, o sistema punitivo seria um subsistema social garantidor do sistema de produção da vida material, cujas práticas punitivas consubstanciam uma economia política do corpo para criar docilidade e extrair utilidade das forças corporais.A perspectiva histórica da pesquisa de FOUCAULT parece assumir que as relações de produção da vida material engendram as relações de dominação do sistema punitivo, orientadas para (re)construir o corpo como força produtiva – ou seja, como poder produtivo –, e como força submetida, mediante constituição de um poder político sobre o poder econômico do corpo. Na linguagem de Vigiar e Punir, as relações de saber e de controle do sistema punitivo constituem a microfísica do poder, a estratégia das classes dominantes para produzir a alma como prisão do corpo do condenado – a forma acabada da ideologia de submissão de todos os vigiados, corrigidos e utilizados na produção material das sociedades modernas.Nesse contexto, o binômio poder/saber aparece em relação de 
constituição recíproca: o poder produz o saber que legitima e reproduz o poder.
 No estudo de FOUCAULT, a instituição da prisão substitui o espetáculo punitivo da sociedade feudal, porque a ilegalidade dos corpos da economia feudal de subsistência foi substituída pela ilegalidade dos bens da economia capitalista de privação. Na formação social erigida sobre a relação capital/trabalho assalariado, as ilegalidades são reestruturadas pela posição de classe dos autores: a ilegalidade dos bens das classes populares, julgada por tribunais ordinários, é punida com prisão – ao contrário da ilegalidade dos 
direitos da burguesia, estimulada pelos silêncios, omissões e tolerâncias da legislação, imune à punição ou sancionada com multas –, legitimada pela ideologia do contrato social, em que a posição de membro da sociedade implica aceitação das normas e a prática de infrações determina aceitação da punição. Neste ponto, o gênio de FOUCAULT formula a primeira grande hipótese crítica do trabalho, que parece ser o fio condutor da pesquisa descrita no livro, além de vincular Vigiar e Punir à tradição principal da Criminologia 

(...)


IV. Conclusões
 As conclusões deste trabalho, apresentadas ao longo do estudo das contribuições fundamentais de Vigiar e Punir para a ciência contemporânea do controle social, podem ser assim resumidas:
 1. A pesquisa dos efeitos positivos da prisão, produzidos mediante o investimento do corpo por relações de poder e definidos como estratégia das classes dominantes para criar docilidade e extrair utilidade das forças corporais, indica o modo de atuação da ideologia de submissão de todos os vigiados, corrigidos e utilizados na produção material das sociedades
modernas.
 2. A definição do sistema penal como instrumento de gestão diferencial da criminalidade pela posição social do autor, que concentra a repressão nas camadas sociais subalternas e garante a imunidade das elites de poder .
 3. O conceito de disciplina de FOUCAULT, definido pelas técnicas de controle e sujeição do corpo com o objetivo de tornar o indivíduo dócil e útil, capaz de fazer o que queremos e de operar como queremos, representa uma teoria materialista da ideologia nas sociedades capitalistas, implementada com o objetivo de separar o poder do sujeito sobre a capacidade produtiva do corpo, necessário para a subordinação do trabalho assalariado ao capital.
 4. O estudo da prisão, local da troca jurídica do crime (retribuição equivalente) e do projeto de correção de condenados (sujeitos dóceis e úteis) – com 200 anos de isomorfismo reformista, com fracasso, reforma e reproposição do projeto fracassado – aprofunda a distinção entre objetivos ideológicos e objetivos reais da instituição: os objetivos ideológicos da prisão seriam a repressão e redução da criminalidade; os objetivos reais da prisão seriam a repressãoseletiva da criminalidade e a organização da delinqüência, definida como tática política de submissão.
 5. O controle da criminalidade aparece no contexto político da luta de classes das sociedades modernas, marcado pelo fracasso dos objetivos ideológicos de repressão da criminalidade e de correção do condenado, que encobre o êxito histórico dos objetivos reais de gestão diferencial da criminalidade: a lei penal é instrumento de classe, produzida por uma classe para aplicação às classes inferiores; a justiça penal constitui mecanismo de dominação de classe, caracterizado pela gestão diferencial das ilegalidades; a prisão é a instituição central da estratégia de dissociação política da criminalidade, com repressão da criminalidade das classes inferiores e imunização da criminalidade das elites de poder econômico e político. 


Fonte: http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/30anos_vigiar_punir.pdf

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